Parecer do IASP esclarece possibilidade de concurso de crimes entre os tipos penais que tutelam o Estado Democrático de Direito (arts. 359-L e 359-M do Código Penal)

A Comissão de Estudos de Direito Penal do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) emitiu parecer técnico para esclarecer, sob uma perspectiva abstrata não direcionada a um caso concreto,  a possível aplicação conjunta de dois crimes previstos no Código Penal brasileiro: “abolição violenta do Estado Democrático de Direito” e “golpe de Estado”, em voga nos processos no STF sobre os atos antidemocráticos do 8 de janeiro de 2022.

O parecer foi apresentado pela vice-presidente da Comissão, Maíra Salomi, durante reunião de Diretoria e Conselho realizada na sede do Instituto, no dia 25 de junho.

Esses dois crimes foram incluídos recentemente na legislação penal pela Lei nº 14.197/2021, que substituiu a antiga Lei de Segurança Nacional. Ambos tratam de ataques à democracia por meio de violência ou grave ameaça, mas possuem diferenças relevantes:

  • O crime previsto no art. 359-L do Código Penal ocorre quando há uma tentativa de abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o funcionamento de ao menos um dos três poderes da República (Executivo, Legislativo e Judiciário).
  • Já o crime previsto no art. 359-M do Código Penal trata da tentativa de derrubar o governo legitimamente eleito, ou seja, de retirar o presidente da República do cargo, relacionada, portanto, ao Poder Executivo.

O parecer do IASP esclarece que, embora os dois crimes tenham semelhanças – como o uso da força ou da ameaça – não são sempre aplicáveis simultaneamente, podendo ocorrer o que se denomina de conflito aparente de normas. A depender do caso concreto, um pode absorver o outro, conforme o critério jurídico conhecido como “princípio da consunção”.

Por exemplo, se a tentativa de golpe contra o presidente revelar-se como etapa inicial para a posterior abolição do Estado Democrático de Direito ou ainda vier acompanhada de atos que também impedem o funcionamento de outros poderes, como o Congresso Nacional ou o Supremo Tribunal Federal, aplica-se somente o crime do art. 359-L do Código Penal, por ter abrangência mais ampla. Já se a ação se limitar a forçar a saída do presidente, sem qualquer restrição ao funcionamento do Poder Executivo ou interferência nos demais poderes, o crime aplicável é apenas o de golpe de Estado.

Excepcionalmente, contudo, pode haver o concurso material entre esses crimes, quando os fatos apontarem para condutas com propósitos claramente independentes entre si, e as ofensas atingirem simultaneamente o governo eleito e o funcionamento dos poderes constitucionais, poderá haver concurso de crimes, com a incidência de ambos os dispositivos legais.

Conclusão

As formas de execução de tentativa de golpe de Estado, que não impeçam ou restrinjam o funcionamento dos poderes constitucionais, ou não sirvam, de qualquer modo, como fase inicial da tentativa de abolição ao Estado Democrático de Direito, podem ensejar o concurso entre os crimes previstos nos arts. 359-L e 359-M do Código Penal.

Tem-se, portanto, a possibilidade da prática dos crimes analisados em concurso material excepcionalmente, a depender do cenário fático em que ocorridos. Na maioria dos casos, a convivência dos tipos penais implica evidente conflito aparente de normas, resolvido a partir da absorção do crime de golpe de Estado pelo crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito.

O parecer do IASP tem como objetivo oferecer segurança jurídica e clareza técnica diante de um tema sensível e atual, especialmente em um contexto de crescente atenção pública às ameaças institucionais e à estabilidade democrática no país, que merecem estudo aprofundado, afastando qualquer debate político ideológico.