Nota – Análise do anteprojeto de PEC dos precatórios

Calote no pagamento dos débitos judiciais de todos os níveis federativos

A nova PEC que o governo federal pretende apresentar ao Congresso Nacional, com apoio dos governadores, visando promover medidas emergenciais de combate à calamidade pública de âmbito nacional com o surto do coronavírus (Covid-19), propõe basicamente o seguinte no tocante ao pagamento dos precatórios:

Débitos judicias da União

Prorrogação do pagamento dos precatórios no exercício de 2020, no montante total de R$ 46 bilhões, que passariam a ser liquidados até o final do exercício de 2021, acrescido de correção monetária e juros moratórios (art. 3°, inc. III, § 1°), condicionando essa moratória ao emprego dos recursos no combate à pandemia.

Ficariam de fora dessa prorrogação as obrigações consideradas como de pequeno valor (RPVs) (60 salários mínimos, ou seja R$ 62.700,00), bem como o valor correspondente a até três vezes o valor da RPV relativa aos precatórios devidos aos idosos, doentes graves e portadores de necessidades especiais, ou seja, créditos de até R$ 188.100,00, ficando eventual saldo a ser pago até final de 2021.

A grande preocupação com essa suspensão é o alto valor dos precatórios de 2020, o maior da história (R$ 46 bilhões), que deverão ser pagos, caso promulgada a PEC, no mesmo exercício dos débitos judiciais requisitados entre 02/07/2019 a 31/07/2020, ou seja, em 2021. Embora o valor total das requisições para 2021 ainda não seja conhecido, considerando a evolução crescente dos últimos anos, tudo indica que o valor total a ser desembolsado pelo governo federal para liquidação dos precatórios em 2021, cumulando dois exercícios financeiros, gire em torno dos R$ 100 bilhões de reais, recaindo preocupação sobre a capacidade de a União realizar efetivamente esse pagamento.

Débitos judicias dos Estados, Distrito Federal e municípios

A mesma regra aplicável à União passaria também a valer para os Estados e municípios que estão no regime ordinário de pagamento de precatórios, por força do que dispõe o caput do art. 3°.

Já para os Estados, o Distrito Federal e municípios que estão atualmente no regime especial previsto no art. 101 (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT), a PEC propõe diversas modificações não apenas no prazo de vigência desse regime, passando de 2024 para 2030, mas também na forma de apuração da parcela mínima mensal, que voltaria a ser calculada de acordo com as regiões do país, sendo de 2% da Receita Corrente Líquida (RCL) para os Estados do Sul e Sudeste, e de 1,5% para Estados das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, aplicando-se também os mesmos percentuais para Estados cujo estoque de precatórios seja inferior (1,5%) ou superior (2%) a 35% da RCL. A mesma lógica valeria também para os municípios, porém em percentuais menores (1% e 1,5%).

Também os entes devedores submetidos ao regime especial estariam autorizados a suspender o cumprimento dos repasses mensais previstos no art. 101-ADCT até abril de 2021, desde que os recursos orçamentários sejam empregados no combate ao surto viral, conforme prevê o art. 4° da nova PEC. Ocorre que aqui, diferentemente do que se passa com a União, a maioria dos Estados e o Distrito Federal (especialmente o Estado de São Paulo), vem utilizando depósitos judiciais autorizados pela Lei Complementar n° 151/2015 e pela EC 99/2017 no pagamento dos precatórios, mediante transferência dos tribunais de justiça. Logo, os Estados que vêm cumprindo os repasses mensais do regime especial com recursos obtidos com o levantamento de depósitos judiciais não poderiam em tese se beneficiar dessa moratória, pois esses recursos não são decorrentes do orçamento público, mas de receita adicional vinculada exclusivamente à quitação de precatórios, por expressa previsão legal e constitucional, que sequer poderia ser remanejada para outra finalidade, por mais nobre que fosse, como acudir o atual estado de emergência.

Pela regra do art. 3°, inc. III, da nova PEC, os entes sujeitos ao regime especial continuariam obrigados ao pagamento do chamado “crédito superpreferencial” (CF, art. 100, § 2°), devidos aos credores de débitos de natureza alimentar idosos e portadores de necessidade especiais, tal como ressalvado em relação aos débitos da União, porém limitados a até 5 vezes o valor da respetiva RPV, também não sofrendo solução de continuidade a quitação regular das próprias RPVs (o Estado de São Paulo reduziu recentemente o valor da RPV de R$ 30.119,20 para R$ 11.678,89).

Finalmente, a nova PEC ainda propõe em seu art. 5°, a extinção da obrigação da União de financiar, direta ou indiretamente, por meios dos bancos públicos (BB e CEF), os valores necessários à quitação do estoque de precatórios em atraso que supere a capacidade máxima de comprometimento de receita orçamentária do ente devedor, atualmente prevista no § 4° do art. 101-ADCT. Essa medida demonstra a absoluta falta de compromisso do governo federal com a demanda de prefeituras endividadas, que desde 2016 vêm requerendo esse financiamento para complementar os recursos necessários para conseguir liquidar o estoque de débitos até o prazo final do regime especial, alterado pela EC 99/2017 de 2020 para 2024.

Obviamente a nova PEC encaminha para um cenário de grande retrocesso na quitação dos débitos judiciais dos entes públicos e terá como consequência, se vier mesmo a ser promulgada pelo Congresso Nacional, o aumento vertiginoso nos próximos anos da dívida total de Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, atualmente de R$ 140 bilhões. Além disso, vai na contramão das medidas governamentais preconizadas por diversos países, como os Estados Unidos, seguindo orientação do FMI, de injetar liquidez na economia para mitigar os efeitos econômicos da crise, evitando assim o agravamento da situação, em especial para os idosos, que constituem o grupo de risco da Covid-19.

Marco Antonio Innocenti
Presidente da Comissão de Precatórios do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP)