Debates do IASP sobre violência contra a mulher mostram necessidade de avanços, além das leis
Por Gislaine Guitierre, da Avocar Comunicação
05 de abril de 2019
Promotora de Justiça aponta que 96% das vítimas de feminicídios não têm proteção judicial; comissões do Instituto lançam ideias para atuação conjunta e criação de cartilha sobre o assunto
A conclusão do debate promovido pelo IASP (Instituto dos Advogados de São Paulo) no dia 21 de março sobre a violência contra a mulher mostra a necessidade de avançar além das leis. Foram dois encontros com mais de quatro horas no mês em que se comemora o Dia da Mulher. Um pela manhã, com palestra da promotora de Justiça Valeria Scarance, que é coordenadora do Núcleo de Gênero do Ministério Público de São Paulo, e outro à tarde, uma reunião aberta da Comissão de Direito da Família e Sucessões.
“A violência contra a mulher no Brasil é uma doença, um padrão que vem se repetindo por gerações e gerações”, disse Scarance no início de sua palestra. Participaram como debatedores Mario Luiz Delgado e Maria Fernanda Vaiano, da Comissão de Direito de Família e Sucessões, e a presidente da Comissão de Direito Penal, Marina Pinhão Coelho Araújo.
Scarance mostrou dados alarmantes. Por exemplo: só no Estado de São Paulo, segundo dados do MP, uma mulher morre ou sofre tentativa de feminicídio por dia.
“Não há uma fórmula mágica, não há um caminho único para lidarmos com isso”, disse Scarance. Para a promotora, o grande nó não está nas leis. Ela lembrou que a Lei Maria da Penha é considerada a terceira melhor lei do mundo, segundo a ONU (Organização das Nações Unidas), e que a lei do Feminicídio é fundamental para esse enfrentamento.
Cultura
O problema maior, segundo Scarance, é cultural. Na palestra, ela citou livros científicos em que tentaram justificar a inferioridade feminina, mostrou propagandas em que as mulheres são colocadas como objeto e concluiu que o homem, por sua vez, chega à vida adulta tendo assimilado exemplos de agressões desde a infância.
Assim, mesmo com leis fortes e com a divulgação de casos quase diariamente na mídia, a violência não diminui. Segundo a promotora, porque “o agressor age em uma crescente de violência, primeiro isolando a mulher do que dá sustentação a ela, com a família e os amigos”. Em seguida, o agressor inverte o jogo, com frases como: “você me deixa louco”, “olha o que você me fez fazer”. Assim, a vítima “se vê como responsável pelo ataque”.
Proteção penal
Outra dificuldade para mudar a situação é o fato de todas as mudanças legislativas serem muito recentes. A mulher só passou a ser considerada igual ao homem perante a lei na Constituição de 1988. O estupro, até dez anos atrás, não era um crime contra a mulher, mas já foi um crime contra a honra, a família e os costumes.
Para Scarance, não se deve julgar a vítima, pois isso pode reconduzi-la ao silêncio. É preciso pedir as medidas protetivas, sobretudo após a separação, já que, segundo pesquisa do MP, uma em cada duas mortes ocorre nessa fase.
A promotora cita pesquisa feita pelo MP que mostra que 96% das vítimas de feminicídio consumado ou tentado não tinham feito B.O., nem tinham proteção judicial. “Isso mostra que as medidas protetivas funcionam, sim”.
Cartilha
À tarde, a Comissão de Família e Sucessões avançou no debate, propondo mais soluções para o enfrentamento do problema. Além de Mario Luiz Delgado e Marina Pinhão Coelho Araújo, o presidente da Comissão de Corrupção, Crimes Econômicos, Financeiros e Tributários, Miguel Pereira Neto, e o diretor de Relações Institucionais Maurício Felberg, também participaram da discussão.
Para Marina Pinhão, é fundamental treinar os advogados que trabalham com a violência doméstica, para que possam conhecer e usar todos os instrumentos possíveis no processo. Para isso, propôs que as comissões Penal e de Família do IASP criem uma cartilha com as medidas que existem e que podem ser trocadas na esfera penal e civil.
A mesa também debateu os casos de falsa denúncia de violência, e Miguel Pereira Neto levou ao centro das discussões os casos de violência psiciológica causados por stalkers, ou perseguidores, que ameaçam as vítimas por meio de plataformas digitais. “Existe tipificação em outros países, mas aqui se aproveita algumas normas de direito penal, com penas reduzidas, de três meses ou multa”, explica Neto.
Já Delgado lembrou dos crimes contra o patrimônio inseridos no contexto de violência doméstica. Caso, por exemplo, da destruição de objetos pessoais, crime de dano. A questão frequente para os advogados é o excludente de ilicitude para esses crimes quando ainda existe a sociedade conjugal. “Só que a sociedade conjugal deixa de existir quando há a separação de fato”, argumentou.
Felberg propôs ainda uma reflexão sobre a atuação da categoria como mediadora de conflitos. “Dois bons advogados, dois bons escritórios têm toda a condição de resolver o problema sem ter de bater à Justiça”, disse. “O conselho de um profissional, uma orientação, muitas vezes tem valor maior que uma medida judicial.”
Delgado disse que ainda há muito a ser debatido sobre a questão do combate à violência contra a mulher. Por isso, cogita a realização de mais um dia inteiro dedicado ao tema, com cinco ou seis palestras abordando diferentes aspectos sobre o assunto.