Celso Lafer é agraciado com o Colar do Mérito Judiciário do Tribunal de Justiça de São Paulo

12 de julho de 2018
Avocar Comunicação

Conheça o discurso de agradecimento do emérito jurista e associado do IASP, ao receber a Outorga de Colar do Mérito Judiciário
 

O professor Celso Lafer, cuja trajetória passa por momentos importantes da história brasileira, foi homenageado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, em junho de 2018, com a Outorga de Colar do Mérito Judiciário. 

O sócio remido do IASP (Instituto dos Advogados de São Paulo) lembrou importantes momentos do Judiciário que acompanhou ao longo da vida, desde a infância, por intermédio do pai, passando pelo seu ingresso como estudante na Faculdade de Direito, até os diversos cargos e desafios que teve ao longo da carreira. 

Chefe do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP, Lafer não deixou de falar sobre os desafios que a modernidade impõe ao Judiciário, como questões envolvendo bioética ou o mundo digital. 

Lafer foi ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio e ministro das Relações Exteriores e embaixador do Brasil junto à OMC (Organização Mundial do Comércio) e embaixador na Organização das Nações Unidas. Foi ainda o responsável pela organização da histórica Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (conhecida como Rio 92, ou ECO92). 

Abaixo, segue a íntegra de seu discurso de 04 de junho: 

“A minha primeira palavra é a de um sensibilizado agradecimento ao Tribunal de Justiça, que me confere, pela uníssona decisão de seus órgãos competentes, o Colar do Mérito Judiciário. É uma grande honra este reconhecimento do meu percurso de professor de Direito, emanado do Tribunal de Justiça do meu Estado – um tribunal de grande e notória tradição e prestígio na vida jurídica do nosso país, integrado no passado e no presente por grandes figuras do Direito brasileiro. Um tribunal cuja jurisprudência acompanho como jurista atento ao seu significado e muito consciente do seu alcance como fonte determinante da revelação do Direito que se processa através do exercício da jurisdição de segunda instância. Na palavra sempre iluminadora do poeta e querido amigo Paulo Bomfim: 
    “… Tribunal de Justiça
    Sobre a espada da Lei a balança
    É o saber que se faz julgamento
    É sentença que é o sol de esperança.”

Norberto Bobbio, observava que, na medida em que passam os anos, os “affeti” – os afetos – se conjugam com os “concetti” – os conceitos.

Permito-me assim iniciar esta alocução com a memória dos afetos, registrando que o Tribunal, para evocar o livro de Natalia Ginzburg, integrava o meu léxico familiar. Meu pai A. Jacob Lafer, que era da turma de 1930 da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, a inscrição nº 2 da OAB e que iniciou a sua atividade profissional trabalhando no escritório do Profº Octavio Mendes, seu professor de Direito Comercial na Faculdade, sempre manifestou, em família, o seu alto apreço pelo Tribunal. Apreciava as qualidades de seus colegas que integraram o Tribunal e com os quais conviveu. Entre eles, Raphael de Barros Monteiro, que foi presidente do Tribunal  e  subsequentemente Ministro do Supremo Tribunal Federal e, aliás, também um dos primeiros a receber o Colar do Mérito Judiciário; Edgar de Moura Bittencourt, grande figura do Direito da Familia e com o qual se solidarizou quando o arbítrio o afastou de suas funções judicantes; João Baptista de Arruda Sampaio e Oswaldo Aranha Bandeira de Mello.

Com meu pai aprendi, na prática advocatícia, a importância do Direito na construção de soluções para equacionar e resolver problemas e relembro que o seu contínuo e afetuoso apoio respaldou a minha vida universitária e profissional. Faço assim, com saudades, esta remissão ao léxico familiar, registrando que ninguém mais do que meu pai teria maior satisfação em saber que hoje estou recebendo o Colar do Mérito Judiciário do Tribunal do seu Estado, que ele tanto apreciava.

A minha turma da Faculdade de Direito do Largo São Francisco – a turma de 1964 – é uma turma que apreciou e aprendeu com a convivência acadêmica e a vem prolongando no correr dos anos, na frequência dos nossos encontros regulares, inspirado pela vocação agregadora da nossa Associação dos Antigos Alunos. É uma turma, como é usual na experiência dos egressos de São Francisco, que se destacou em vários campos – na advocacia, na vida pública, na diplomacia, no ministério público, nas procuradorias, no magistério e na magistratura. A nossa turma sempre valorizou, na reciprocidade dos afetos e da amizade, as etapas dos caminhos profissionais dos colegas. Entre eles, os dez que se tornaram desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Lembro os mais próximos na constância dos contatos: Maurício da Costa Carvalho Vidigal, que foi recentemente Corregedor Geral da Justiça, e Pedro Luiz Ricardo Gagliardi, meritório pioneiro da informática jurídica e que exerceu a direção da Escola Paulista de Magistratura, o braço acadêmico do judiciário paulista. Faço esta averbação para indicar que o Tribunal de Justiça não é apenas parte do meu léxico familiar, graças à saudosa lembrança do meu pai. É igualmente um local de memória da querida turma de 1964, o que dá a esta solenidade de outorga do Colar do Mérito Judiciário um peso afetivo adicional. 

Durante 40 anos, de 1971 a 2011, fui professor da Faculdade de Direito da USP, o que me deu a oportunidade de ter como alunos destacados integrantes da Magistratura Paulista. Tive a honra de ser, até a minha aposentadoria compulsória, titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito, e acabo de receber da Faculdade, este ano, a grande distinção de professor-emérito. A isto se soma, para o meu desvanecimento, a insígnia com a qual foram agraciados eminentes Mestres da Faculdade de Direito da USP, que enriqueceram com o seu saber a cultura jurídica. É uma láurea que ilumina com sua outorga o sentido dos meus passos nos caminhos do Direito.

Tobias Barreto, num texto sobre a jurisprudência da vida diária de Jhering, observou, adaptando uma formulação de Emerson, que no seu percurso arribou, como um canoeiro, em parte aonde pretendia arribar e em parte onde lhe conduziu a força da correnteza. Minha reflexão e análise do Direito tem algo da metáfora da canoagem de Tobias Barreto. O seu ponto de partida provém de uma visão da Filosofia e da Teoria Geral do Direito, sub specie juris, tal como formulado por Norberto Bobbio. É uma área do conhecimento elaborada por juristas com inquietações filosóficas, que se viram instigados em sua análise e reflexão pelos desafios e problemas que não encontram adequada solução, e encaminhamento no âmbito estrito do Direito Positivo. Hoje, muito mais do que no passado, “a lei não está mais pronta para o uso”, como observa Rainer Wahl. Daí a pertinência de uma Filosofia do Direito dos juristas, que provém de um “parar para pensar” arendtiano, lastreado no concreto da dinâmica da experiência jurídica que enseja o conhecimento e a identificação das aporias que a criação e aplicação das normas suscitam.

No meu caso pessoal, o “parar para pensar” beneficiou-se do trato com o Direito Internacional, que também lecionei, numa dialética de mútua complementariedade, concomitantemente com a Filosofia do Direito. É também de Bobbio a observação que os internacionalistas oferecem elementos relevantes para a Teoria Geral do Direito, ao estudar as peculiaridades de um Direito em movimento e os correspondentes problemas de sua juridicidade. Permito-me, neste sentido, recordar uma experiência do período em que fui Embaixador do Brasil em Genebra perante a Organização Mundial do Comércio, no momento inicial de sua institucionalização.

A criação da OMC, fruto das negociações da Rodada Uruguai do GATT, é uma expressão de um Direito em movimento. Implantou no plano internacional um inédito sistema de solução de controvérsias, de adensada juridicidade e dotado de automaticidade de jurisdição. Criou também uma inovadora segunda instância – o Órgão de Apelação, incumbida de apreciar e rever as matérias de Direito e de interpretação provenientes das decisões de primeira instância dos “panels”. Presidi, em 1996, eleito pela prática de consenso da OMC, o seu Órgão de Solução de Controvérsias, o que me deu, “ex-officio”, a oportunidade  de ter uma visão do conjunto e encaminhar a operacionalização de um sistema que estava adquirindo institucionalidade própria. 

A minha presidência coincidiu com o início do funcionamento do Órgão de Apelação, o que me ofereceu, ex lege, a oportunidade de discutir com os seus nove membros os dispositivos de seu regimento interno. As discussões foram muito interessantes para um embaixador professor de Direito e acabei endossando uma proposta dos membros do Órgão de Apelação. Esta abria um prévio espaço para uma troca de opiniões de todo o colegiado do Órgão de Apelação sobre qualquer controvérsia, mantendo evidentemente a responsabilidade exclusiva da Câmara de Três, a qual incumbe a decisão de uma controvérsia nos termos do ordenamento jurídico da OMC. 

Respaldei a proposta perante os membros da OMC, nela identificando um válido contexto que contribuiria para ampliar a coerência e consistência da futura jurisprudência do Órgão de Apelação. Esta não tem, como é de praxe do Direito Internacional, a natureza de precedentes obrigatórios, mas a colegialidade da discussão prévia, no meu entender e dos membros do Órgão de Apelação, teria, como teve, um papel positivo para assegurar a segurança da previsibilidade na aplicação e interpretação do Direito da OMC. 
Deste modo, veio a ser um componente adicional da expansão de uma das funções do Direito Internacional Público, no caso a de informar e indicar por obra da vis directiva de sua jurisprudência, padrões aceitáveis da conduta no âmbito das disciplinas jurídicas contempladas pelo ordenamento da OMC.

 Evoco esta experiência porque ela me deu oportunidade de lidar, na prática, com um problema que em nosso país crescentemente me preocupa como professor de Direito e advogado: o da  segurança jurídica. “Um direito incerto é também um direito injusto”, como observou Teophilo Cavalcanti Filho, em pioneiro livro de 1964 sobre a questão. É o nexo incerto/injusto que faz da segurança jurídica um valor de primeira grandeza em qualquer ordenamento democrático.  Na sua acepção normativa, configura-se, como expõe Humberto Ávila – meu colega de magistério na Faculdade de Direito –, como uma norma-princípio. Esta norma-princípio é o pressuposto para a eficácia da ordem de princípios  – dos muitos princípios que permeiam a Constituição  de 1988. É por isso que no contexto da aplicação das normas, na interação entre princípios e regras, a ponderação da segurança jurídica tem relevo hierárquico. Por essa razão, na lição de Humberto Ávila, o princípio da segurança jurídica é a “norma das normas”. É ele que dá, observo eu, identidade própria ao “governo das leis” como algo distinto do “governo dos homens”, por mais bem-intencionados que sejam.

Faço esta digressão para registrar, com respeitosa admiração, que a jurisprudência do Tribunal de Justiça está atenta ao valor estabilizador da segurança jurídica. 

Em 2014 o desembargador José Renato Nalini, na condição de Presidente do Tribunal de Justiça, criou um Conselho Consultivo Institucional para o qual me indicou como um dos representantes da sociedade civil. O Conselho assinalou meritória e republicana abertura a uma discussão pela sociedade, que é a destinatária do serviço público da prestação jurisdicional, dos desafios que enfrenta o Tribunal na distribuição da justiça.

A experiência do Conselho me deu a oportunidade de, em parceria com seus membros, “parar para pensar”, com uma visão de conjunto, importantes elementos com os quais o Judiciário se depara nos dias de hoje. 

No contexto desta solenidade, parece-me oportuno fazer alguma indicação de como esta experiência complementou e enriqueceu a minha visão de uma Filosofia e Teoria Geral do Direito, sub specie juris. 

O Direito, ensinava o Prof. Goffredo Telles Jr. – paraninfo da minha turma de 1964 e que recebeu o Colar de Mérito Judiciário  na década de  1990 –, é a disciplina da  convivência humana. Esta disciplina tem entre os seus ingredientes fundamentais a interpretação e a  aplicação do Direito.

A interpretação integra o léxico fundamental do Direito e aos seus desafios epistemológicos dediquei-me nos cursos de pós-graduação, em parceria com o meu fraternal colega e amigo, o Profº. Tercio Sampaio Ferraz Jr., reconhecida autoridade na matéria. É na praxis do Direito em ação – na “law in action”, para falar como Roscoe Pound -, que o magistrado-intérprete se ocupa e se preocupa com a passagem de verba legis para  sententia legis. Esta passagem tem a sua complexidade própria. Por esta razão, os problemas de interpretação e da aplicação do Direito são temas recorrentes da Teoria Geral do Direito, que se renovam continuamente numa dinâmica entre continuidade e mudança, adquirindo novas configurações por obra dos processos de transformação do Direito. Esta origina-se  da interação entre Fatos e Valores, para evocar a teoria tridimensional de Miguel Reale, meu caro professor de Filosofia do Direito, que recebeu o Colar do Mérito Judiciário em 1978. 

O Direito não é só experiência, como dizia Holmes, mas não se capta sem a experiência, como pontuava Miguel Reale. Esta, na minha canoagem de professor de Filosofia do Direito, para lembrar a metáfora de Tobias Barreto, foi devidamente enriquecida, como mencionei, pela participação no Conselho Consultivo Institucional criado pelo desembargador José Renato Nalini. Alargou minha compreensão a respeito da profundidade das transformações que estão ampliando, ratione materiae, o conteúdo do jurídico e que são uma expressão de um Direito em movimento, que aprendi a avaliar como internacionalista. É o que me leva a lembrar uma lição de San Tiago Dantas, tratando da renovação do Direito: “O jurista está no mundo de hoje como deve ter estado o geógrafo na época das descobertas”, para indicar como a nova cartografia, com os seus problemas, é constitutiva dos desafios que enfrenta a prestação jurisdicional.

O avassalador avanço do conhecimento científico-tecnológico vem propiciando a transposição de barreiras antes tidas como naturais e efetivas e impactando o cotidiano das pessoas e a vida dos países. Nesta dinâmica, a natureza deixou de ser um dado para ser um construído da ação humana. Daí, como consequência, uma nova área da Filosofia do Direito, a Bioética, voltada para o esclarecimento de questões suscitadas pelas inovações que tornam possível agir sobre fenômenos vitais de maneira inédita, e por via de consequência, acarretando os problemas jurídicos da biossegurança. 

Na praxis do Direito isto vem ampliando o escopo e as transformações do Direito de Família (paternidade, gênero, inseminação in vitro) e do Direito da Saúde (transplante de órgãos, próteses, novos remédios, prolongamento de vida), ensejando no campo dos valores o jogo dialético entre o possível e o aceitável, que, com frequência, o magistrado se vê na obrigação de dirimir.

A civilização industrial contemporânea evidenciou a fragilidade dos ecossistemas que, integrados, sustentam a vida na terra, o que converteu a natureza num horizonte de vulnerabilidade. Daí a razão de ser do Direito do Meio-Ambiente, das novas dimensões da responsabilidade jurídica, de novos institutos, como os de análise de impacto ambiental, e do princípio da precaução, que passaram a se inserir no âmbito da prestação jurisdicional.

A era digital vem levando a crescente informatização do Direito, mudando o funcionamento da atividade jurídica com desdobramentos nas lides submetidas à apreciação do Judiciário. Ampliou-se o acesso à informação e à sua divulgação, facilitado pelo armazenamento eletrônico de dados. Daí, novos problemas para tutela  de direito à intimidade, do  sigilo bancário  e tributário,  da contenção dos “escritos de ódio” nas redes sociais, do direito à informação exata que a propagação das “fake-news” coloca em questão. 

A amplitude do armazenamento eletrônico de dados dá outra escala à cooperação internacional das autoridades tributárias, voltada para conter no país e no mundo a evasão fiscal e a lavagem de dinheiro; o mesmo ocorrendo em matéria de escala pelas interações dos Ministérios Públicos e das polícias, o que gera novos desafios para a temática das provas e da sua apropriada aceitabilidade, num Estado de Direito, com impacto no Direito Penal. 

A estas considerações, que levaram em conta o peso das mudanças trazidas pelo impacto do Direito proveniente da revolução científico-tecnológica, cabe agregar outras, provenientes das exigências da crescente complexidade da sociedade brasileira. É o caso do Direito das áreas especializadas dos  serviços públicos (p. ex. da energia, das telecomunicações, da infraestrutura) e, no campo dos direitos humanos, os direitos do consumidor e os direitos que resultam da tutela  da especificação dos seres em situação de vulnerabilidade, de onde provêm os temas de identidade e de aceitabilidade do “diferente”. 

No plano mais geral, recordo que o papel do Direito deixou de ser o de conservar a sociedade, como definia Dante Alighieri no “De Monarchia”, qualificando as condutas em boas ou más. Passou a ser um instrumento de gestão da sociedade atento, como aponta Bobbio, às funções de permitir, proibir, estimular e desestimular condutas. As necessidade de gestão comprometem a estabilidade do Direito, como o produto da  durabilidade do work de que falava Hannah Arendt e de que são exemplo as grandes codificações. Passam a ter, crescentemente, para continuar com Hannah Arendt, na criação das normas, as características do labor, ou seja, expressam o incessante metabolismo da sociedade. É o que explica as medidas provisórias, as contínuas emendas constitucionais e, no âmbito do Direito Tributário, na perspectiva do contribuinte, o permanente desafio do custo da conformidade. 

A Constituição de 1988 está em sintonia com o que Bobbio qualificou de função promocional do Direito. Os seus muitos princípios têm uma função prospectiva e, em virtude de sua maior generalidade, uma força expansiva. Esta não só colocou na prestação jurisdicional o problema da solução das antinomias entre princípios, mas os desafios da interação entre regras e princípios, com os muitos  discutidos temas de interpretação e aplicação do Direito, que não cabe neste momento relembrar. O que aponto é que estas características  contribuem, na praxis jurídica, tanto para a recepção da obra de Luhmann, ao favorecerem a legitimação pelo procedimento, quanto para a pragmática de uma dogmática de  decisão, lastreada na teoria da argumentação elaborada, “avant la lettre” entre nós, pelo Profº. Tercio Sampaio Ferraz Jr. 

A constitucionalização do Direito enfraqueceu a clássica distinção entre Direito Público e Direito Privado, que o neo kantiano Radbruch, na sua Filosofia do Direito, considerava como duas categorias apriori do pensamento jurídico. Daí, consequências na interpretação e aplicação do Direito. 

A constitucionalização do Direito promove uma adensada convergência do Direito Administrativo com o Direito Constitucional, que tem seus desdobramentos na interpretação e aplicação do Direito. Um exemplo é a perda do sentido operacional do limite entre legalidade e mérito, que favorece a politização do controle jurisdicional da função administrativa. Isto impacta concretamente o modus operandi da legalidade e da justiciabilidade, modificando as modalidades, num Estado de Direito, do que Miguel Reale qualificou como “jurisfação do poder”.

A Constituição ampliou o acesso à justiça, que encontrou eco na litigiosidade da sociedade e que a multiplicidade de recursos processuais estimula. Daí, uma sobrecarga de demandas com as quais se confronta  o Tribunal de Justiça. Entre elas, as  demandas de massa ligadas aos direitos do consumidor e, em matérias previdenciárias, somadas às provenientes das obrigações legais que fazem do Estado um grande litigante na segunda instância. São assuntos conhecidos e  debatidos, que menciono apenas com o intuito de observar que, ao lado do “stress” do volume de demandas, o Tribunal enfrenta ainda o “stress” da complexidade de demandas trazidas por um Direito em movimento, que em rápidas pinceladas procurei traçar nesta exposição. 

Não é um ofício simples a função de julgar, que está sempre permeada pela aspiração de justiça da sociedade. Daí, evidentemente, a grande responsabilidade dos juízes. Magistrado e Magistério têm a mesma origem etimológica, o que me dá a liberdade de observar que a função de dizer o direito de magistrado confere, por assim dizer, uma intimidade ontológica entre o juiz e o Direito, ao qual dediquei o meu magistério. É o que me permite concluir com plena confiança que o Tribunal de Justiça, inspirado na sua tradição e no conhecimento dos seus desembargadores, saberá dizer o Direito nesta época de sua transformação e dos novos desafios de interpretação e aplicação, que envolvem responsabilidades adicionais, que apontei nesta alocução.”